Crônica vencedora do Ecos Mostra

A aluna do curso de Jornalismo da Faesa, Daniela Esperandio, do 2º período, foi premiada no concurso de do Ecos Mostra 2017. O tema deste ano foi Pessoas em situação de rua. Os jurados que avaliaram as crônicas foram a editora adjunta do caderno 2 da Rede Gazeta, Darshany Loyola, e o repórter do caderno 2 da Rede Gazeta, Thiago Sobrinho.

Daniela arrancou elogios pela forma abordada e escrita em sua crônica, cujo título é 173 – número do ônibus que ela pegava para voltar para casa de um curso. Seu trabalho, além de bem escrito, foi bem apresentado, levando o primeiro lugar.

173

O ônibus andava pelas ruas asfaltadas do Centro de Vitória enquanto eu observava as pessoas nas calçadas pela janela, com a cabeça encostada no vidro junto aos meus fones de ouvido que faziam o incrível trabalho de me entreter. A canção era doce que nem açúcar, não combinando com o meu estado de espírito. O ônibus estava quase vazio; apenas duas senhoras eram passageiras, como eu; elas ocupavam os dois primeiros bancos da frente, enquanto eu me contentava com o último à direita. O cobrador tamborilava os dedos na gaveta coletora de dinheiro e as mulheres pareciam conversar. Eu não as ouvia, a canção não deixava.

As ruas me cumprimentavam e se despediam rapidamente. O sol tinha se despedido
também, deixando o céu cinza e cheio de nuvens. A paisagem era perfeita para inspirar poetas do Romantismo a escreverem os mais melancólicos poemas. Porém, eu não precisava deles para me embriagar na melancolia; o que eu via pela janela já estava fazendo um ótimo trabalho.

O ônibus parou no sinal vermelho, em algum ponto da Avenida Vitória. Tive a vista para uma praça conhecida, que possuía aparelhos de ginástica destinados especialmente ao público idoso. Quando eu era mais nova, costumava brincar com meus amigos naqueles aparelhos coloridos de vermelho e azul enquanto esperava pelo 173. Além de perder muitos dos 173 com tal costume, quando pequena, eu possuía um sentimento caloroso: a sensação de poder mudar o mundo.

Eu queria diminuir a fome na África; queria que o Sertão não sofresse com a seca. Eu queria muitas coisas. Ajudar refugiados das guerras do Oriente Médio, correr atrás de bandidos e os tornar em homens justos…

A praça que se exibia para mim, tinha, em seu chão duro e sujo e pouco convidativo, um indivíduo desfalecido envolto por um lençol cinza. Não consegui enxergar o homem de uma forma detalhada porque o ônibus voltou a se locomover devido ao semáforo dar o aval para seguir, brilhando verde. O homem foi ficando cada vez mais distante, menor.
Quando eu era pequena, queria sair nos jornais como a boa samaritana. Eu procurava problemas distantes e jurava que os mudaria quando tivesse poder para mudá-los.

Envelheci um pouco. A África continuou com altos índices de fome, o Sertão continuou tendo crises de seca, refugiados continuaram sofrendo e meus pés não se moveram atrás  de bandido nenhum. Ao tentar possuir competência para mudar um todo machucado, por que não me contentei em fazer curativos em alguns cortes? Cortes poderiam infeccionar se não tratados.

Enquanto eu escolhia uma outra canção da minha lista de músicas do celular, o céu
inventou chorar. A chuva molhava as janelas do ônibus, ligeira e traquina, mostrando interesse em me atingir. Fechei a janela que permitia tal ousadia e voltei a encarar as calçadas. Quem não tinha para onde ir, fazia o quê? Aquele homem da pracinha ficaria à mercê de uma gripe ou procuraria um teto temporário para o acolher?

Lá fora estava tudo em preto e branco. As gotas de chuva se tornaram corrosivas. Quando pequena, eu não notava que a fome assolava as calçadas por onde eu costumava passar. Quando eu era mais nova, eu não entendia o porquê de pessoas não terem casa. Eu só ouvia falar na palavra vagabundagem e a reproduzia com fervor. Ouvia falar nos vícios que as drogas criavam e ouvia relacionarem estes com a fraqueza; eu não questionava, assim como não fazia ideia de que a droga tinha garras afiadas, que eram cravadas nos braços dos usuários. Eu não sabia que muitos destes tentavam se soltar daqueles dedos cinzentos; que tentavam fugir e se esconder daquele rosto dissimulado que a droga tinha. Ela gargalhava e chegava a engasgar com o sofrimento de suas vítimas, as quais eram encurraladas e presas em um quarto sem luz.

Quando mais nova, eu não entendia os motivos que levavam indivíduos a morarem nas ruas. Mal sabia eu sobre os problemas familiares que eles enfrentavam. Mal sabia eu que a droga fazia convites azedos de tirar uma pessoa da própria casa, levando-a para as calçadas; trocando a cama com colchão, por um pedaço de papelão sujo. Eu pouco sabia que muitos dos moradores já tiveram emprego e uma vida arrumada, com conforto. Eles foram para as ruas talvez por traumas, por serem expulsos de casa… Cada um tinha um motivo. Uma história triste para contar.

A chuva engrossou, e relâmpagos se apresentaram no céu tempestuoso. Tirei um dos
fones de ouvido e escutei a voz de um trovão, que fez minha pele se arrepiar. As senhoras que antes conversavam, pareciam assustadas enquanto o cobrador as acalmava com palavras. Perguntei-me quem acalmaria aqueles que viviam nas ruas.
Os problemas que existiam no mundo eram como areia em minhas mãos. Escorriam pelos meus dedos por não caberem em minhas palmas. Eu podia não ter poder para fazer feitos grandes, mas poderia fazer algo pequeno que talvez fosse grande para um outro alguém.  Eu não tinha como sentir o que aquele homem da praça sentia. Mas poderia chutar. A solidão, tristeza, fome, medo e saudade o abraçavam com uma vontade proibida, e não deixavam o pobre humano sair do enlaço amargo. Ele precisava de ajuda, assim como inúmeros outros indivíduos que estavam naquela mesma situação, rodeados por sentimentos ruins e desesperança.

Depois de percorrer o caminho do Centro de Vitória até o meu bairro, com a companhia da chuva, de trovões e relâmpagos, o motorista parou o ônibus ao meu sinal. Eu não tinha uma sombrinha, mas tinha fôlego para correr. A chuva ainda caía, mas em compensação, os relâmpagos e trovões deram uma trégua; talvez eles tivessem um certo apreço por mim, afinal. E eu tinha apreço pela expressão “dar a volta por cima”.

Eu não desistiria de tentar ajudar a acabar com a fome na África. Nunca. Também não desistiria de tentar ajudar os refugiados das guerras, de correr atrás de bandidos e os tornar em homens justos e nem de dar apoio às pessoas que sofriam com a seca do Sertão.

Com determinação, eu me agarraria a uma ideia que não escapasse das minhas palmas. Ideias que não fossem areia em excesso. Ideias tocáveis. Aquele homem da praça precisava de apoio; eu poderia dar a ele. Não, eu não chegaria com a chave de uma casa e a ofereceria a ele com um enorme sorriso nos lábios falando “parabéns, comprei uma casa novinha para você!”. Conversar com ele já seria um passo; doar roupas e comida; mobilizar conhecidos e desconhecidos para a causa; apoiar ONG’s, com doações ou ser voluntária. Mostrar aos vis indivíduos que dormir no chão de praça é desumano, assim como fuxicar lixeiras atrás de comida.

A porta do ônibus abriu e eu fui para a rua. Corri para fugir da chuva e acabei tropeçando. Eu era uma estabanada criatura que queria salvar o mundo, mas que não salvava nem a si mesma direito. Sorri. Quando criança, eu gostava de pular nas poças d’água e molhar os outros com minha traquinagem. Envelheci e continuei fazendo a mesma coisa, assim como também mantive dentro do peito a sensação de poder mudar o mundo.

Eu colocaria curativos nos cortes de um todo. Com o tempo, o todo ficaria menos ferido.

 

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