O obra-prima do español Luís Buñuel é o filme da semana no projeto Clássicos no Jardins, que exibe grandes títulos do cinema mundial. Estrelado por Catherine Deneuve, A Bela da Tarde (Belle de Jour, França, 1967) estreia esta quinta, dia 26/04, e ficará em cartaz até a próxima quarta, 02/05, sempre às 17h.
Surrealista, Buñuel sempre retratou em seus filmes as questões da psiquê humana. Seu primeiro trabalho, Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, França, 1929), realizado em parceria ao seu amigo Salvador Dalí, representou uma quebra num padrão cinematográfico, e ainda hoje estabelecido, de que tudo que é mostrado na tela precisa ser explicado e fazer sentido, e levou o expectador a pensar sobre o que estava assistindo. Quase um século depois, a obra ainda provoca arrepios a quem está acostumado com histórias lineares e roteiros mastigados e didáticos.
Com apenas 16 minutos, o curta-metragem é uma colagem de imagens retiradas dos sonhos de Buñuel e Dalí. Não existe uma explicação racional para o filme e nem tente encontrar um significado para o que está sendo mostrado. Um Cão Andaluz é um mergulho profundo no inconsciente humano, povoado pelos mais perversos desejos e os mais indecifráveis sentidos.

Em a Bela da Tarde, Buñuel explora essa fórmula, de instigar a mente do público, ao transportar o espectador para o interior a mente da protagonista da trama. Catherine Deneuve interpreta Séverine, uma jovem casada que, cansada da monótona vida conjugal, decide ocupar suas tardes solitárias em prostíbulo local. Seus desejos e fantasias são retratados de forma a ser confundido com suas atividades do dia a dia, seja como esposa ou como prostituta, seja em casa ou no bordel.
No longa, Buñuel mescla sequências de realidade de Séverine com imagens de seus sonhos e lembranças de seu passado. Nada, no entanto, é óbvio ou definido. O filme transita o tempo inteiro entre o onírico e o real sem nunca entregar o que de fato está acontecendo. O que é sonho? O que é real? Buñuel nunca entrega respostas. A questão principal do filme é um questionamento constante da realidade que cerca Séverine.
O surrealismo está presente em vários momentos do filme. Em uma das sequências mais famosas, a personagem de Catherine Deneuve aparece amarrada pelas mãos em uma árvore, sendo agredida por vários homens. Séverine está vivendo isso ou se trata apenas de um desejo reprimido? O que se passa na mente de uma mulher casada com fetiches violentos e masoquistas? De forma geral, uma série de questões permeia a trama. Séverine realmente tem uma segunda vida como prostituta ou apenas imagina e sonha com esta possibilidade? As leituras são várias. E exatamente aqui onde reside a essência do filme, na pluralidade de significados das questões que formam a nossa mente e a nossa percepção da realidade.

A película pode ser interpretada como uma trama simples e banal sobre uma mulher que passa as tardes vendendo o corpo a homens desconhecidos para vencer o tédio da vida conjugal. Podemos extrair daí uma série de críticas ao moralismo e aos valores presente na sociedade da época, a repressão sexual, ao papel exercido pela mulher. Sim, elas estão presentes, mas podemos também ir além e atribuir múltiplos significados àquilo que vemos. Podemos analisar a complexidade da mente humana, do comportamento e das relações sociais. A profundidade de A Bela da Tarde, inclusive, o transformou um importante objeto de estudo na área da psicanálise. Buñuel fala sobre o irracional, o inexplicável e incompreensível, sobre as questões mais abissais do inconsciente.
Outro ponto forte do filme, e que não pode deixar de ser comentado, é o belíssimo figurino, assinado por Yves Saint Laurent. Catherine Deneuve consegue transpor toda a sofisticação e elegância da mulher francesa mesmo quando está envolvida em um meio considerado vulgar e decadente. Os vestidos desenhados pelo estilista francês contribuem também para que o espectador se insira dentro do imaginário de Séverine.
A Bela da Tarde é um filme que questiona, que instiga, que tira o espectador do seu lugar comum. Assisti-lo é uma experiência única e diferente a de qualquer outro filme. Uma obra-prima para não apenas ser vista como também sentida.