O país do futuro assiste um prédio desabar ocupado por famílias. A cidade da mudança testemunha imóveis envelhecerem sem prestar assistência a quem não tem onde morar. Texto desenvolvido por Thais Rossi (thaismr@live.com)
Acordei na manhã dia 1 de maio. Feriado nacional histórico, marcado pela luta da classe trabalhista. O segundo pós-impeachment da presidenta Dilma Roussef. Com certeza, em algum momento, me seria noticiado que os movimentos sociais saíram as ruas para denunciar, mais uma vez, o fato que beneficiou apenas governistas interessados em continuar lavando dinheiro público. Para os pobres, um malefício que será sentido anos a frente. Até aqui, passado esse tempo, nenhuma política que os inclua. Apenas mais exclusão.
A primeira notícia chegou em menos de dez minutos, por celular. Um edifício construído em 1966, abandonado em 2001 e cedido provisoriamente a Prefeitura em 2017 para funcionamento da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, no Largo Paissandu, na Grande São Paulo, desabou após um incêndio durante a madrugada. Fato por si só assustador, mas acompanhado de uma tragédia social: o local estava ocupado por diversas famílias do movimento Luta por Moradia Digna (LMD).

Por vídeo, assisti o momento exato em que o prédio desaba. Debaixo dos escombros, um número incontável de desaparecidos. Em 2018, é estarrecedor que famílias inteiras ainda precisem vagar pelas cidades em busca de um teto para residir. O direito a moradia é garantido pela Constituição Federal. Morrer tentando sobreviver é irônico.
No outro dia, 2 de maio, cheguei para trabalhar as 8h. Fui pautada em saber a quantas andava o assunto ocupações na cidade, especificamente no Centro de Vitória (bairro com 200 prédios abandonados, segundo último levantamento da Associação de Moradores). Passei pelo Antigo Hotel Majestic – Ocupação Marielle Franco -; e pelo prédio de número 59, na Avenida Jerônimo Monteiro (abandonado, mas sem ocupação).
Ocupações em Vitória
A última parada foi no antigo colégio Americano Batista, localizado na Rua Loren Reno, no Parque Moscoso. Por já ter estado na porta de duas ocupações em 2017 – quando esse assunto pautou a mídia capixaba – cheguei na intenção de fazer apenas fotos (geralmente os ocupantes não nos autorizam a subir, por divergências com os jornalistas).

Vi uma pessoa ao lado de fora, caminhei pelo chão cheio de lama e me apresentei. Num aperto de mão, apresentação feita, conheci o líder da ocupação. Júnior Pereira da Rocha e eu encostamos num carro para conversar. Um dos ocupantes passou e me hostilizou (nenhuma surpresa). Mas, após alguns instantes, aí sim minha surpresa: “quer subir?”.
O prédio pertence a Prefeitura de Vitória. Tem três andares. Está ocupado por, pelo menos, nove famílias, há dois meses. Na entrada, passei por uma área. Foi meu primeiro contanto com a deterioração do tempo. Esgoto e água da chuva se misturavam no chão. Alguns degraus de escada e adentrei o prédio. Os ocupantes moram em espaços de um cômodo. Se organizam como podem, num espaço com mofos nas paredes e fiação elétrica inadequada.
Nesses espaços, eles também dividem a história em comum: falta de emprego. Me chamou a atenção que todos buscaram uma ocupação nesse período de dois anos pós-impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Me assustou, na mesmo proporção, que uma outra alternativa para eles seja morar na rua, caso aconteça uma reintegração de posse.
Eu morava em Belo Horizonte e vim para Vitória por falta de emprego, há nove meses. Eu trabalhava por dia, como ajudante de pedreiro, mas não me pagaram. Fiquei em situação de rua seis meses e meio com minha esposa (grávida), e após isso, conheci uma pessoa e fui chamado para integrar a ocupação”, me contou Júnior.
Durante a conversa, ele me falou sobre a sensação de morar numa ocupação. Minha ansiedade entre ser hostilizada na porta do local e ficar surpresa com um convite para entrar não é nada perto do que ele vive todos os dias.
“É uma adrenalina morar numa ocupação. É como se a qualquer hora o dono fosse chegar e pedir o imóvel. Temos sempre um advogado e quem possa correr atrás dos documentos para tentar nos ajudar. Nós aqui lutamos por moradia”.
Segundo Júnior, o prédio está condenado, mas por orientação de um engenheiro, eles permanecem no local por considerar que não há riscos estruturais. “Nenhum representante (ele se refere ao poder público) veio aqui. Estamos aguardando. Vamos continuar aqui. Queremos melhoria para nós. Caso a gente precise sair, vamos para outro lugar”.
Na nossa volta ao local de entrada, encontrei o desempregado Rodrigo Ramos Delfino, 31, tentando limpar água e esgoto com um rodo. Fora do mercado de trabalho há mais de um ano, ele me conta que morava no bairro Santos Dumont, em Vitória, mas acabou despejado por falta de dinheiro para pagar o aluguel.
A pessoa me pediu a casa e não vi outra alternativa a não ser acompanhar meus amigos, que lutam por moradia. Muitos deles vem da Fazendinha (ocupação no bairro Grande Vitória) e estão na luta por moradia junto ao Governo do Estado”.
Rodrigo afirma que algumas dessas pessoas já conseguiram uma moradia. Ele se refere ao Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do Governo Federal, que prioriza famílias com menor renda per capita; mulheres chefes de família e famílias com o maior numero de crianças. Por cota definida em lei, 5% das residências são para pessoas com deficiência e 3% para idosos.
Programa Morar no Centro
O CadÚnico também é levado em conta no Programa Morar no Centro, da Prefeitura de Vitória, que tem o objetivo de reduzir o déficit habitacional da cidade. Porém, esse projeto caminha a passos lentos. Três prédios foram reformados e 94 moradias entregues a famílias de baixa renda em aproximadamente nove anos (estimativa de tempo do programa). Enquanto isso, 10.500 famílias não tem moradia própria em Vitória. No Brasil, são 6 milhões.
A previsão é entregar mais 40 casas do Morar no Centro, mas não há data para que isso aconteça. Segundo a Prefeitura, eles dependem de análise da Caixa Econômica Federal e também da desocupação dos espaços. Porém, quem ocupa afirma que a prioridade não são os ocupantes, que já estavam ali.
A prefeitura quer passar para pessoas de fora. Quem precisa mesmo, eles não estão colocando. Às vezes, são pessoas que até tem moradia. Não quero chegar a situação de rua. Por isso estou aqui. Tenho um filho e estou na luta para que eu, ele e até o filho dele tenham moradia, que é um direito nosso”, afirmou Rodrigo.
Mais uma volta pelo espaço e chegamos ao terraço. Vi teto caindo as pedaços; fogão improvisado sobre tijolos; caixote com dois repolhos e banana; um fogão que servia de estoque para alguns mantimentos. Também encontrei o rapaz que me hostilizou na entrada. Entre a frase “vocês da mídia são todos sensacionalistas” e uma conversa ao telefone na qual eu o escutava dizer, em tom cansado “Não aguento mais isso”, pude entender, novamente, que não tenho adrenalinas e anseios a serem resolvidos tão rápido quanto os dele. Eu tenho uma casa. Ele não. Por isso, não me cabia responder. Eu estava no lugar de escuta. Esse é o papel do jornalista.
Prestes a ir embora, encontrei a desempregada Verônica Fleres Alves dos Santos, 18, que foi mais sucinta para contar a própria história: morava numa casa de apenas um cômodo com outras cinco pessoas no bairro São Pedro. “Vim para cá por estar precisando de uma moradia. Esse prédio está abandonado há 10 anos. Minha mãe permaneceu na casa de São Pedro. Eu estou aqui há um mês, com minha irmã e meu marido”.
Quando questionada sobre o que representa estar numa ocupação, Verônica travou. Timidez ou emoção? A resposta também foi curta: “Estamos ai”.
Esse não é a conclusão. Enquanto eu escrevo (confortavelmente sentada) e você provavelmente lê, eles continuam lá. Em São Paulo, os sobreviventes do prédio que desabou agora moram em barracas ao longo do Largo Paissandu. Faz uma temperatura mínima de 12º C por lá. No resto do Brasil, essas pessoas dividem comodos em prédios completamentes abandonados pelo município.
Ninguém decide do dia para a noite que vai invadir um prédio. Isso é reagir em meio ao total desespero. Por isso, não é correto que algumas pessoas chamem os movimentos de luta por moradia de “invasões”. Porque opinar confortavelmente sentado e julgar quando se tem comida pelo três vezes ao dia e um emprego não é justo. É cruel. A pobreza é fruto de políticas públicas falidas ou da total ausência delas. Se o Estado não garantir direitos básicos (saúde, educação, segurança e moradia), o custo continuará sendo altíssimo. E não será financeiro, mas sim em ainda mais vidas.
É triste esta situação que muitos assim como eu tem que passar. Moro com meu esposo e 2 filhos, um de 2 anos e outro de 10 meses. Tudo o que queremos é um lugarzinho pra chamar de nosso. Ver as crianças crescendo, correndo num quintalzinho… Mas o nosso direito à moradia se perdeu sabe-se lá em que ponto da história. Muitos com 3, 4… 10 imóveis, outros sem nenhum, tendo que viver em ocupações. O município até tem programas voltados para moradia, porém, pelo o que eu entendi no site, é que eles são voltados pra quem está em situação de rua. Vivemos assim em ocupações, mas estas são verdadeiras caixas de surpresas nunca sabemos o quanto a estrutura pode resistir, muito menos em que momento o proprietário virá pedir reintegração de posse.
Não é nada fácil, não mesmo. Mas prefiro acreditar que no final dará tudo certo.
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