Brendha Zamprognio
Não faz muito tempo que a cultura dos quadrinhos relacionada a heróis tornou-se popular mundialmente. O início dessa febre deu-se com Homem de Ferro em 2008, sendo o primeiro filme do atual universo cinematográfico Marvel. Mesmo já sendo algo conhecido, trazer esse universo gráfico para as grandes produções hollywoodianas foi uma forma de globalizar uma cultura que antes era restrita ao público “nerd”.
De certo modo, essa cultura é considerada elitista, justamente pela falta de acessibilidade a esses produtos, principalmente levando em conta o preço cobrado e a necessidade de investir na sequência de histórias de um determinado personagem que é desenvolvida em intermináveis edições de revistas em quadrinho. Contudo, com os filmes lançados, uma nova ponte foi erguida e o que era somente consumido por meio de revistas internacionais, hoje pode ser consumido nos cinemas do mundo todo.
{ Spoiler alert!! }
Recentemente, foi lançada a outra parte desse universo, Capitã Marvel. O filme conta a história de Carol Danvers, uma ex-agente da Força Aérea norte-americana, que, ao participar de uma missão desconhecida com sua capitã, chamada Mar-Vell, acabou caindo em uma emboscada e foi atingida pela explosão da fonte de energia carregando na aviação, o que resultou na perda de memória e no surgimento dos superpoderes.
Sem se lembrar de sua vida na Terra, é recrutada por uma raça alienígena chamada Kree para fazer parte de um exército de elite. Inimiga declarada dos Skrull, ela acaba voltando à Terra para impedir uma invasão dos metamorfos e, assim, começa a sua missão de autoconhecimento, com a ajuda do agente Nick Fury (Samuel L. Jackson) e da gata Goose.

O filme representa o significado do que realmente é ser mulher. Por esse motivo foi altamente consagrado por grande parte do público feminino que até então nunca havia sentido toda a sua força representada nesse universo dos HQs.
Mesmo a DC Comics ser pioneira do protagonismo feminino nesse universo ao lançar Mulher Maravilha em 2017, a identificação com a personagem é algo inviável, justamente pela falta de aproximação da mesma com a realidade, não só por ser uma Deusa, mas, também, pelos traços de personalidade (gentileza, bondade etc.).
Já a capitã Marvel mostra como ela se reergueu perante aos seus fracassos e principalmente a sua luta em alcançar os objetivos e defender os ideais, em que o maior obstáculo é ser uma mulher nesse mundo marcado pelo machismo. O filme demonstra o poder do processo de empoderamento da heroína mais forte do universo cinematográfico Marvel – palavras do próprio presidente do estúdio, Kevin Feige – e a representatividade é poder.

Além da maior arrecadação para um filme com uma protagonista mulher, a produção estreou na bilheteria mundial e apenas em uma semana alcançou a marca dos 500 milhões de dólares, sendo a segunda maior estreia de um filme de super-herói, ficando atrás apenas de Vingadores: Guerra Infinita.
O filme, de maneira geral, sofreu críticas por falhas nos efeitos visuais, na demora no desenvolvimento da história, no figurino e até mesmo no elenco (objeções com a protagonista em relação ao seu corpo não ser “adequado” para o papel de heroína). Sofreu também severas críticas pelo seu objetivo em mostrar a história de uma mulher protagonista que está capacitada a salvar um universo que até então é lembrado por seus personagens masculinos. Mas até que ponto isso incomodou o público?
É incrível procurar as críticas ao filme e ler o quão é problemático para os homens ver uma mulher que não pede desculpas por ser forte e/ou não ter sido delicada. Tiveram reclamações relacionadas à falta de sorriso da Brie Larson (capitã marvel) no primeiro trailer do filme. Até mesmo a atriz se pronunciou sobre a questão e questionou porque isso nunca foi apontado aos heróis masculinos desse universo, o que gerou uma série de montagens tentando provar esse ponto:
Ainda assim, foi recompensador ver mulheres saindo da sala de cinema se sentindo reconfortadas ao ver uma personagem inspiradora para a nossa realidade da mesma maneira que as mulheres do mundo tiveram necessidade de provar e reafirmar a sua posição como heroína em toda a sua história.
Os flashbacks que aparecem na memória da personagem mostram justamente o quanto ela foi questionada durante toda a vida por ser mulher. Diante essa luta, a atriz Emma Watson discursou durante um evento da ONU, em 2015, defendendo várias causas, inclusive essa questão:
“Se homens não precisam ser agressivos para serem aceitos, mulheres não se sentirão obrigadas a serem submissas.”
Emma Watson

Alguns consideram que a ideologia do filme é aliada a preceitos feministas por ser um momento histórico oportuno com a repercussão atual desse assunto, porém foi uma decisão consciente dos autores da heroína, Roy Thomas, Gene Colan e Gerry Conway ( que inclusive a nomearam inicialmente de Ms. Marvel como uma forma de protesto, pois os prefixos mais comuns da língua americana,“Miss” ou “Mrs, são utilizados para se referir ao estado civil da mulher, então usar Ms. era a alternativa usada na época pelas mulheres independentes.) criar uma personagem que ressaltasse a luta feminista e que representasse a autolibertação e identidade. Assim também foi apontado que por ter esse viés a produção estaria se imunizando as criticas porque está blindado pelo feminismo, como se qualquer crítica, mesmo as produtivas, fossem consideradas parte do machismo estrutural.
A existência de uma personagem que não nota a manipulação feita em torno de sua vida por um homem que a obriga a reprimir seus sentimentos, demonstra o estereotipo de que mulheres são muito sentimentais e sensíveis para estar em um cargo de liderança.

Sendo enganada e mantida em silêncio pelo medo, a todo o momento ela é desafiada a não usar todo seu poder, essas situações representam a realidade da complexidade da experiência feminina em relação a relacionamentos abusivos (de qualquer origem). Contudo, assim que ela contesta o que antes era imposto, é mostrado para o público como é ter força e o que significa ser uma mulher, fazendo parte da própria natureza desse filme. A filosofa e teórica francesa Simone de Beauvoir aponta essa construção do reconhecimento feminino em uma das suas frases mais famosas: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
A filosofa também discute no livro Todos os Homens São Mortais outras questões como essa:
“À mulher amar-se em sua força e não em sua fraqueza; não para fugir de si mesma, mas para se encontrar; não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia então o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal.”
Simone de Beauvoir
Nascemos num mundo onde nos ensinam a sermos princesas, mas, mesmo assim, crescemos dentro de nós o sonho de ser uma heroína. Podemos ser as heroínas mais persistentes e fortes do mundo na tela do cinema ou não. O filme nos mostra o vilão do patriarcado e a batalha feminista dia após o outro tentando o vencer. É muito revigorante ver o feminismo salvando o universo.
