Demora e sofrimento: o órgão que não veio

Karen Benício e Matheus Metzker

Mesmo o Brasil sendo reconhecido perante o mundo por ter o maior sistema público de transplantes, a alta taxa de recusa na doação de órgãos, no caso de familiares de falecidos com morte cerebral, é uma cruel e presente realidade. Na primeira reportagem de nossa série especial ligado ao Dia Nacional de Doação de Órgãos, que é no próximo dia 27, veremos como essa grande recusa adia a esperança de milhares de pessoas que esperam por uma ligação milagrosa para um transplante ou mesmo encerra por completo o otimismo e o retorno de uma vida estável.

Variados motivos podem ser vistos como a causa da recusa, como crenças religiosas e, principalmente, o desconhecimento e a não aceitação da morte encefálica. Isso porque muitos familiares tem o pensamento de que o paciente ter o corpo aquecido e o coração batendo ele sobreviverá e sairá daquela situação, apesar das circunstâncias mostrarem o contrário.

De acordo com dados divulgados em 2018 da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), cerca de 43% das famílias do Brasil não aceitam a doação de órgãos dos entes queridos. As regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste são as que mais possuem resistência nessa questão e apresentam estados com porcentagem bem maior que a média geral, como Roraima (73%), Piauí (74%) e Mato Grosso (80%).

Uma consequência disso é o aumento do número de mortes na fila de espera. É um ciclo fatal: menos conscientização e informação dos familiares sobre o assunto, em seguida ato de recusa e, por fim, a inibição de salvar várias vidas. Por isso, no território brasileiro, ainda segundo a ABTO, 2851 pacientes morreram na fila apenas no ano passado. Desses, aproximadamente 8%, ou seja, 233 pessoas são do Espírito Santo.

É necessário sempre uma rede de apoio ao lado do paciente que o estimula a seguir à frente durante o processo de espera. É o que explica a psicóloga e pós-graduada em Psicologia Hospitalar e da Saúde Caroline Ramalho, 26. “Existe uma expectativa muito grande que cerca a vida desse sujeito, pois tudo que está relacionado a vida dele depende desse processo de transplante para que ele consiga avançar uma etapa. É inegável que se torna uma fase que vai muitas vezes além do sofrimento. É também de esperança”, conta a psicóloga.

Com isso, quando um caminho de superação é interrompido e acontece uma perda abrupta, Caroline afirma que o processo de escuta para com as pessoas que tiveram essa perda é essencial.

Vida interrompida

Lembranças dos bons momentos são os maiores pensamentos que ficam nas mentes daqueles que perdem um ente querido para a fila de transplantes. Questões diariamente pairam na cabeça deles e geram sempre essa dúvida: ‘por que com ele (a)?’. Respostas incertas, mas o sentimento de angústia perdura por toda a vida.

A empresária, dona de uma escola bilíngue, Elizabethe da Silva, 38, sabe muito bem disso. Há 8 meses, a cunhada dela Aparecida Tatiane, 29, morreu pela falta de um fígado. Tudo começou com a esquistossomose, mais conhecida como Doença do Caramujo, que se agravou em outras complicações médicas, como a Cirrose, mesmo nunca ter ingerido álcool.

Elizabethe mostra uma das imagens de recordação da cunhada que morreu pela falta de um transplante de fígado (Foto: Matheus Metzker)

Cada mês que se passava, desde o início, em fevereiro, do processo de tratamento, a situação de Aparecida se agravava, tendo que ficar internada e até amarrada na cama pela dor que sentia. As últimas palavras ditas para Elizabethe aconteceu um mês antes do falecimento, nos primeiros dias de setembro, pois a empresária evitava a ver naquela situação que não correspondia ao sorriso, a alegria e a forma de viver da amiga. “A última vez que a vi, por estar próximo do aniversário da minha filha e ela gostar de fazer bolo, a Tati me falou: ‘eu vou fazer o bolo dela, vou sair daqui’, lembra com a voz embargada pelo choro da imensa saudade.

Nesses meses, até surgiu um fígado em outro Estado, mas por Aparecida não estar no banco nacional de doação – fato que acontece apenas após intensas e graves crises e que ocorreu somente um pouco mais tarde – perdeu a única oportunidade.

Ela não demonstrava o quanto queria viver, mas lutou muito para não morrer e cuidar dos três filhos. Todo dia eu lembro dela. Eu acho que vai demorar para superar por completo. Tenho uma responsabilidade com minhas sobrinhas. Então, tudo vai acontecer gradativamente com o crescimento delas. Enquanto elas tiverem superando, também irei

Elizabethe da Silva

Uma espera fatal

Imensa saudade: a empresária Stephany Velasco perdeu há dois anos o pai Swami que estava na fila de transplantes de órgãos (Foto: Arquivo Pessoal)

27 de agosto de 2017, sem dúvidas, é uma data que nunca será esquecida pela família Velasco. Swami Velasco, empresário no ramo de temperos no Espírito Santo, que precisava de um fígado e um rim para sobreviver, morreu nesse dia na fila de espera, aos 63 anos de idade.

Uma das quatro filhas, a empresária Stephany Velasco, 25, fruto de um dos três casamentos do pai, diz que a necessidade de transplantes, ainda mais complicado pela exigência de ser de um mesmo doador, começou pela diabetes, doença que afetou aos poucos outros órgãos do corpo humano e causou até uma Cirrose Hepática. Todo mês, ela o levava para o hospital para fazer exames para comprovar como o pai estava. Isso definia a posição dele na fila.

Em 2016, tudo foi se agravando na vida de Swami, ao mesmo tempo, Stephany descobriu que estava grávida. Tal fato causou uma felicidade tamanha ao pai que recebeu a notícia do primeiro neto com muito entusiasmo e alegria.

Contudo, para complicar ainda mais a situação de toda família, outro episódio entristeceu e trouxe preocupação, no que era pra se tornar uma esperança: Arthur Miguel, nasceu prematuro. Na mesma época do nascimento, Swami já estava internado no hospital por complicações médicas devido a uma infecção que adquiriu em uma das primeiras sessões de hemodiálise, o que o fez sair da fila de transplante por não ter condições físicas de operar.

Na época foi muito pesado para mim. Meu filho nasceu com seis meses de gestação. Enquanto Arthur estava internado em uma UTI, meu pai estava em outra. Infelizmente, ele não teve a oportunidade de conhecer o avó pessoalmente, somente por fotos

Stephany Velasco
Família Velasco: Gabriela, Stephany, Rafaela e Arthur. No porta-retrato, um registro que nunca aconteceu, mas a Stephany ganhou uma montagem de presente que simula como seria o encontro do pai com o primeiro neto (Foto: Matheus Metzker)

A empresária lembra de cada detalhe dos últimos momentos com o pai, que considerava um amigo e companheiro para todas as horas. “Vi ele um dia antes da morte. Peguei na mão dele, falei te amo e ele respondeu ‘também te amo, fala para o Arthur que estou melhorando’. Eu pedia para ele apertar minha mão, mas a mão dele nem apertava mais”. No dia seguinte desse episódio, veio a constatação. A irmã mais velha ligou para falar a Stephany que ele durante a noite tinha piorado e, por isso, não resistiu.

Aguentar tudo isso, claro, não foi nada fácil para Stephany, que encontrou, no filho, forças para continuar.

Apesar de continuar, a inevitável saudade será por toda a vida. Por isso, lembranças dos momentos divertidos e até dos recadinhos carinhosos que Swami deixava no escritório da empresa farão parte sempre da rotina de Stephany e de toda família. “Ele tinha quatro filhas e nunca deixou faltar amor para nenhuma delas. Sempre teve muito cuidado com a gente”, se emociona ao relembrar o momento mais triste de toda vida.

Em um registro de 24 de janeiro de 2016, Swami escreveu para a filha Stephany:

“Bom dia! Stephany confio muito em você. Agradeço à Deus por ter me dado a oportunidade de cuidar de uma pessoa tão especial, carinhosa e amigo. Quero continuar conduzindo à sua vida para que se torne uma mulher cada vez mais fantástica. Receba o meu amor, meu carinho e minha proteção para sempre. Que Deus te proteja, te guarde, te ilumine por toda vida. Do Papai, Swami.”

A perda do pai foi um fato tão triste e marcante que fez Stephany até repensar mais sobre a importância da doação de órgãos.

Antes, eu não tinha muita consciência, mas hoje vejo que doação é vida. As pessoas são muito fechadas para isso. É preciso uma conscientização para mostrar para todos como ocorre todo o processo. Uma vida pode salvar várias

Stephany Velasco

Foto do Destaque: Matheus Metzker

Deixe uma resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s