Karen Benício e Matheus Metzker
Para além do conhecimento científico, o trabalho de um profissional da saúde requer empatia e dedicação. Ao lidar com vidas, é primordial compreender que a dor pode ultrapassar o corpo físico e atingir o universo psicológico dos pacientes. No processo de doação e transplante de órgãos, os cuidados são ainda maiores porque a morte também está presente.
Na quarta matéria da série especial sobre o tema Doação de Órgãos, conheça o trabalho das equipes médicas que transplantam órgãos e transformam a “morte em vida” e de uma paciente que teve a vida mudada com o empenho de uma equipe interdisciplinar. As três primeiras matérias da série apresentaram: “Demora e sofrimento: o órgão que não veio”; “Nova chance: a satisfação de receber um transplante”; e “Luta pela vida”.
A médica intensivista Scheyla Carminati faz parte da equipe interdisciplinar do centro de captação de órgãos de um hospital particular de Cariacica. A tarefa dela é conversar com as famílias após suspeitas de morte encefálica (perda completa e irreversível da função cerebral) e apresentar os caminhos para a doação. Nessa fase, o acolhimento é a conduta mais importante para construir a ponte entre o doador e o receptor.
É uma situação dramática, pois estão cheios de esperança e, de repente, ficam perdidos. Por mais difícil que seja, tento mostrar que quem doa é um privilegiado ao salvar vidas. Respeito o momento e dou o tempo necessário que precisam para se despedir
Scheyla Carminati
A negativa da família é o principal fator que justifica o baixo índice de transplantes no Espírito Santo. Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) demonstram que, em 2013, 47% dos órgãos que poderiam servir para pacientes com risco de vida não foram doados. Por isso, o diálogo e a humanização são essenciais para o convencimento. “Tenho que sentir a emoção e tentar acolher a família. É uma responsabilidade enorme. Se eu conseguir fazer todo o processo sem erros, saio da morte para a vida”, completa Scheyla.
O transplante
Após conseguir a doação, ainda há um longo caminho até a cirurgia do transplante. É necessário passar por avaliações e exames para verificar a compatibilidade e diminuir o risco da rejeição. Nessa etapa, o trabalho do especialista também é importante para o sucesso do tratamento. O cardiologista clínico Thiago Passamani atua há 10 anos na área e declara que retirar um órgão de uma pessoa para implantar em outra requer habilidade.

Diferente da doação em vida, em que os procedimentos cirúrgicos podem ser agendados, os casos de morte encefálica são urgentes e imediatos. Os órgãos são mantidos com suprimentos de oxigênio e sangue e medicamentos que ativam as funções. O tempo é o maior inimigo da vida. “Toda a equipe fica pressionada. É um procedimento que exige organização e logística. Embora seja comum, toda vez que tem um transplante, há estresse. Apesar dos exames de compatibilidade, a possibilidade da rejeição continua e a angústia também está presente”, explica.
Diante da responsabilidade, é quase impossível não se envolver nas histórias. Ver um paciente, antes debilitado, receber uma nova chance, incentiva o trabalho.
Não tem nada mais reabilitador para o doente do que o transplante. Ao acompanhar esse processo em consultório, percebo o quão importante e gratificante é a minha missão
Thiago Passamani
Vida transformada
Ser atendida por profissionais capacitados em entender o lado do outro fez total diferença na vida da assessora parlamentar Mara Rúbia Nogueira, 43. Ela foi diagnosticada como paciente renal crônica, em 2017, após ficar internada devido à uma infecção no pulmão, seguida da Chikungunya.
Durante esse período, Mara foi tratada com altas doses de medicação, antibiótico e anti-inflamatório, que comprometeram as funções do rins. Sem alternativa, ela deu início à hemodiálise (procedimento realizado por uma máquina para filtrar e retirar as toxinas do sangue) e entrou na fila de espera para a doação.

Depois de um ano e três meses sem resposta, o rim veio pelo irmão após um pedido dela para ver a compatibilidade. Em cada fase, o pensamento positivo foi necessário para aceitar o tratamento. Hoje, se sente agradecida por tudo ter dado certo.
Apesar de transplantada, os cuidados com a saúde continuam. Mara ainda frequenta a psicóloga para encarar todas as transformações do corpo: cicatriz, inchaço, deformações e queda de cabelo. “Algo decisivo foi a conversa com a psicóloga para as mudanças no corpo. A gente se olha no espelho e tem a sensação de mutilação. É difícil lidar com isso, mas eu agradeço por estar viva. Meu cabelo e os meus cílios caíram e estou preparada para que isso não me abata. Logo, será só uma lembrança do passado”, expõe emocionada.